domingo, 22 de abril de 2012

Eu sou.


Hataka – Templo-mor do Khen-shô. 1995 depois da Queda.

Henzo Arashy

    – Não posso dar um nome a ela, senhor? – pergunta o jovem Henzo ajoelhado sobre a esteira de juta, incapaz de retirar o olhar da bainha trabalhada e do cabo estilizado, imaginando a lâmina mortal ali adormecida. A neve da noite anterior cristalizara toda e qualquer umidade da vegetação de altitude, transformando essa ímpar manhã ensolarada de Outono num agradável prisma suavemente reflexivo por onde quer que se olhe.
    – Qual o nome de sua mão esquerda? E da sua orelha? Teria teu cotovelo um sobrenome ou mesmo uma alcunha, quiçá um apelido? – retruca Azurack gesticulando suavemente. Coça de leve a barbicha e se apoia no braço displicentemente.
    – Entendo. Não devo dar nome a uma parte de meu corpo, mesmo que possa caso queira. Contudo, qual motivo leva os ocidentais a nomear suas armas? – o questionamento do jovem vem carregado da fantasia das histórias e livros romanceados. O silêncio no altiplano de Enheinier torna fácil a fala vagarosa e descomprometida ao redor do jogo naástiense de chá.
    – Pois para os mesmos elas são isso – armas. – Azurack deita-se com uma mão sobre a nuca e traga longamente seu cachimbo de tabaco pacífico. O idoso pensa sem pressa sobre sua própria afirmação.
    – E o que ela tem de ser para mim? – indaga Henzo, servindo-se de uma xícara fumegante e odorífica. Passa a vista nas telas que, mesmo após uma década, tanto o fascinam com detalhes que se revelam quase íntimos a cada vislumbre.
    – Nada. Ela tem de ser você. E somente. – soergue-se o mestre, reabastecendo de tabaco o antigo cachimbo. Prefere um kan em detrimento ao chá de ershinia, adiciona sal às bordas do masu e sorve o fermentado pré-aquecido, degustando-o ao máximo.
    Henzo medita sobre a questão, deixa o vapor abrir suas vias aéreas e ouve os passos de Dashin subindo os degraus, aproximando-se com determinação. Resolve ignorar e retornar ao diálogo com seu mestre: – Eu sou um escultor da realidade. Minha vontade expressa pode alterar o rumo do ambiente ao meu redor, o que, com o efeito de cascata que se segue, acaba por mudar todo o cosmo. Eu sou livre, penso por mim mesmo e isso é a maior responsabilidade que se pode contrair. A katana simboliza a capacidade singular que possuo, enquanto praticante de Khen-shô, em separar as distrações do que realmente importa; apresentar aos meus opositores minha determinação em mudar, em evoluir, e em impedi-los de prejudicar outras vidas livres no processo de existência. Eu sou um agente da guerra, da guerra da razão, da guerra do imaterial, e, se me convocarem com o mal, da guerra se sangue e carne, daquela em que não há vencedores, mas sim culpados. Eu sou aquele que confronta estes culpados, e que os pune se me convier. Eu sou uma arma, e escolhi como quero morrer e viver agora. – ao término da sentença Henzo sente uma leveza incomum, uma clareza de espírito que nunca havia experimentado. Demora a notar a presença de Dashin no recinto – o amigo e rival está estático e ofegante abaixo do grande batente de entrada. Nítidas manchas vermelhas no roupão monástico contam uma prévia do que acontecera bem antes que o aluno consiga proferir alguma palavra compreensível.
    – Poucos homens podem fazer essa escolha Henzo, felicite-se por isso. – diz Azurack, referindo-se a ultima afirmação do aluno, observa Dashin por algum tempo, ofertando-lhe um olhar calmo e apaziguador, tranquilizando-o. Dando-lhe oportunidade de se explicar quando se sentir bem para isso. Continua a tragar o cachimbo e baforar languidamente.
    – Estão mortos... – Dashin diz somente.
    – Os cobradores? – questiona Azurack.
    – Sim... – confirma o desorientado aluno. Seu olhar se perde no nada, revive cada respiração do acontecido e arqueja fundo.
    – Não vou te perguntar como ou porque aconteceu, isso pode esperar e talvez nem mesmo valha a pena ser mencionado. O que realmente importa é somente isso Dashin – o que você sentiu quando os matou? – o mestre inclina seu torso na direção do aluno e o força a responder.
    – Eu... Eu estou em paz. – seus olhos brilham com a umidade da afirmação. Dashin cai de joelhos. O aluno tranquilo e estável, paciente e tardio em irar-se. O jovem que costumava pescar e libertar seu prêmio, mesmo sabendo que ficaria com fome depois. O humano dedicado que trabalhava e treinava sem nunca reclamar.
    – Ser sincero consigo mesmo é sempre o primeiro passo para se atingir a plenitude de consciência. – declara Azurack, voltando-se a deitar por sobre algumas almofadas bordadas que por ali estavam.
    – Deve haver algo errado mestre. Eu não sou assim. – afirma Dashin, perplexo com todo esse dia e suas tragédias. Ouve os gritos e as moedas caindo nas pedras da estrada, os ossos estourando abaixo dos músculos e pele sob a pressão de seus punhos precisos. Observa as próprias mãos tremendo involuntárias.
    – Dashin, meu querido afilhado, esteja certo que você nunca foi tão você quanto hoje, quando matou aqueles homens. O que está aqui na minha frente é o seu medo, a sua vergonha e confusão. Mas você ficou naquela vila, matando. Isso é você. E não deve ter vergonha disso, deve abraçar e seguir seu verdadeiro Eu. Vai precisar dele muito em breve, pois suas ações têm consequências e não espere que eu o ajude a reparar os seus erros. Muitos outros virão aqui cobrar o sangue que você derramou, e terá de lhes prestar contas. Sozinho. E longe de minha casa. Volte se puder, sempre será bem vindo. – o mestre fala mansamente, vagaroso. Ergue a cabeça somente para tomar mais kan e torna a se acomodar entre as almofadas.
    Henzo pode imaginar os soldados que serão enviados, pode mesmo vê-los em sua mente, trajando muito metal e couro, tentando capturar o veloz Dashin. Nesse momento compreende e então age. Leva a mão ao cabo da katana sob o suporte à sua frente sem hesitar. Ergue-se e começa a caminhar rumo à saída.
    – Não preciso de você Henzo, posso cuidar disso sozinho. – Dashin também se levanta e ultrapassa seu rival, marchando sobre a esteira de juta.
    – Então terá de me impedir aqui, à força. Sabe que jamais permitiria que morresse longe de minha lâmina. – declara Henzo, parando ao seu lado.
    Ambos se encaram sem amizade, mas com respeito. Ouvem o mestre tossir e baforar. Sem aviso Dashin torna a caminhar e Henzo o acompanha, começam a descer os mil e duzentos degraus sem pressa.
    Azurack sorri abaixo de toda aquela fumaça alucinógena e relaxante.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O Dantiello dos Elfos.


Elfivanhiein – Plano natal dos Elfos. Cento e vinte anos antes da Queda.

                                                                                                             Ifriévilon

Faz dois dias que caminho pela planície do sul e ao longe avisto as montanhas onde as “Tecelãs do Aço” habitam mais um dia de marcha persistente. O céu está verde como nunca, as nuvens ofertando a sombra que as raras árvores não fornecem, graças à arte de não depender das cidades para sobreviver que aprendi com meus pais me sinto em casa aqui. Tem água fresca por perto, posso ouvi-la, um dos muitos riachos que descem da cordilheira das Tecelãs. Minha pele negra resiste bem ao sol e o vento da manhã é fresco e generoso. Afrouxo a gola da camisa e levanto a cabeça para poder sentir melhor a brisa ascendente enquanto penso na possível aparência das Mães da terra.
Dou um sorriso, meio sem sentindo, admito. Respiro fundo e recomeço a caminhar, depois de alguns minutos posso ver um pequeno córrego. Concentro-me e faço a terra a levitar até minha mão e com esforço moldo-a na forma de um pequeno prato fundo, descartando as impurezas do solo. Chego à margem do riacho com o prato de argila ainda não consigo identificar bem os minerais, mas acho que é argila olho ao redor para me certificar que não há algum predador a espreita e quando confirmo a negativa me ajoelho e me farto. Logo torno a rumar em direção à montanha.
O mundo é perfeito. E nós elfos refletimos o orgulho perfeccionista de nossa deusa Ellendelenodorielen, para os íntimos somente Ellen. As Tecelãs nos ajudam com o desenvolvimento psiônico há milênios, outra criação da deusa-mãe. Dizem que a comunicação com elas é feita através do coração por falta de um aparelho fonador apropriado. Isso sempre me pareceu muito estranho e suspeito, e meio feminino demais.  Espero que ao término de meu treinamento possa estar recolhendo o ferro da terra e fundindo-o quase instantaneamente, dando-lhe a forma que quiser em segundos, assim como elas fazem. Graças a Ellen, espero que possa chamá-la assim um dia, estamos nesse mundo perfeito, esta criação espontânea de sua benevolência. Quero ser um de seus servos mais próximos e ajudar os elfos a crescerem cultural e socialmente.
Depois de algumas horas de caminhada fico cansado, paro e pego na minha mochila uma fruta d’Ellen, são redondas e vermelhas e mal cabem nas duas mãos. Uma dessas é o suficiente para matar a fome de um guerreiro por um dia, como não sou um guerreiro sempre sobra. Tentei forçar mentalmente uma pedra a subir até a altura que servisse para assentar, mas sei estar longe o dia que conseguirei isso, a rocha mal se moveu sob o solo. Coloco a mochila no chão e me assento em um tronco parcialmente apodrecido abaixo de uma olafeira e quando estava para dar uma mordida na fruta sou surpreendido pela coisa mais terrível que poderia surgir na planície. Primeiro a sombra, movendo-se a meu lado, viro-me e vejo-o bem próximo, e seu fedor aumenta o medo que ameaça me vencer primeiro. O bisão de três pares de chifre pára a metros de mim, bufa e raspa o solo com uma pata dianteira. São carnívoros territoriais e eu não percebi a chegada dele, talvez estivesse deitado entre as moitas digerindo uma presa. Não sou páreo para o maior predador dessa planície e acho que não vai dar tempo de rezar para Ellendelenodorielen.
Ele olha para mim como eu olhava para a fruta, com fome, estava me desafiando com a aproximação, se reagisse me atacaria a dentadas e investidas a fim de me expulsar de seu território, como não reagi à provocação acaba de decidir que não sou um oponente rival, somente mais comida. Espero que o meu colete de couro pontilhado com metal, meus braceletes e botas também metálicos em algumas partes talvez possam fazer com que se engasgue. Não, não, não. Quero conhecer as Tecelãs do Aço, não é o fim, não vou facilitar para um animal cornudo! Talvez com um golpe de sorte eu consiga acertar minha espada na jugular dele. O maldito começa a correr do nada e exclamo sem pensar:
É isso que me deixa Puto! – e corro o mais rápido que posso.
Saco minha espada por reflexo, não tenho real intenção de usá-la, teria que chegar muito perto, salto por cima de uma moita e caio rolando para o lado, sinto o chão tremer pelo galope do predador que passa rasgando mato e arrancando terra por onde passa, não necessitaria do psionismo mineral para saber onde está a besta. Continuo a correr após me levantar e sou seguido com fúria, faço curvas, e corro mais, as árvores estão longe e ele se aproxima a cada passo. Olho para trás e vejo a bocarra aberta, tropeço e bato em algo que parece ser tão duro quanto à coluna de ferro que meu pai fez no meu quintal para sustentar o moinho. Zonzeio, mas posso jurar que algo me empurrou para o lado, ouço um barulho de pancada abafada e espero a morte, mas ela não felizmente não vem.
Ainda estava meio zonzo e com grama na boca, mas pude ver quando a enorme criatura foi arremessada para longe por outro elfo, vê-lo fazer fez parecer tão fácil. Usava uma coroa prateada e brilhante que reluzia ao sol, e com um grande arco longo composto e argênteo nas costas. Procurei por aljavas e quando notei que não havia tive a certeza que era o Dantiello. Com a capa verde e vestes brancas e leves. Os cabelos eram de um loiro quase irreal e os olhos oliva, como o céu.
Estava no chão tapando o sol com a mão esquerda para poder ver melhor quando ele deu um passo em minha direção e me ajudou a levantar.  Pude ver o mais nobre dos servos com clareza, e foi então que ele disse:
− Bom dia jovem irmão, estou em uma jornada solo um pouco desgastante, teria uma fruta d’Ellen para dividir?
Claro senhor Dantiello. respondi rápido, cheguei a levar as mãos às costas à procura da mochila que ficou ao lado do tronco, antes de minha fuga desesperada. As frutas estão perto do tronco, senhor. – expliquei ao apontar.
Ótimo, mas não me chame de senhor, sou apenas o Dantiello. Agora vamos até lá. – começou a caminhar e o segui de perto.
Assentei no tronco e ele ao meu lado. Parecia esperar que eu pegasse a fruta caída ao lado da mochila, percebi que ele não a pegaria se eu não permitisse. Como se eu pudesse algo diante do elfo que é a maior autoridade abaixo da nossa deusa. Ainda estou um pouco perplexo e abobalhado com esta situação. Pego a fruta e lhe entrego uma boa porção.
Qual é o seu nome? – olhava-me como a um igual, e isso fez-me relaxar.
Ifriévilon, da aldeia de Tianel dos endouros.
Isso explica um jovem elfo de sua estirpe na planície do sul, sozinho. È da cultura dos psiônicos que comungam com a terra e o fogo, o que é raro por sinal é serem aceitos e treinados pelas Tecelãs do Aço. Caso consiga você se tornará um grande herói para o nosso povo. Suas habilidades são raras e poderosas.
Obrigado, mas isso deve demorar muito e não sou um exemplo de paciência. – ofereço meu cantil com licor de adrafar.
Quanto tempo meu jovem? – ele sorri do alto de sua experiência, depois sorve o conteúdo alcoólico.
Se eu for dedicado deve levar algumas décadas.
De onde venho demora-se perto de dois séculos para se tornar um arqueiro arcano.
Deve ter conseguido metade do tempo, certo?
− Demorei algumas décadas a mais. Não era um exemplo de dedicação. – a piada sou bem, pena não ter tido atenção de entendê-la no momento.
Mas porque você demorou tanto? Você é o Dantiello! Você é o mais incrível dos elfos!  − exclamo sem pensar, fico parecendo um infante falando frustrado sobre seu ídolo.
Não, jovem Ifriévilon, não. Não existe o mais incrível dos elfos. Todo elfo é incrível em algo. Devemos ser incríveis para os nossos amigos, pais, filhos e esposas. Aposto que seus pais dizem a todos que eles têm um filho psiônico incrível.
Pode ser verdade o que você diz. – admito.
É Verdade. – devolve-me o cantil.
Porque os elfos dizem que o Dantiello é o mais nobre dos servos de Ellendelenodorielen?
Eu não sou servo somente da Ellen, sou seu servo também, e você também é meu servo. Somos servos desse coletivo, dessa terra, de nossa prole e do futuro que criamos agora.
Eu não entendi. Nós servimos à Deusa...
Ellen também se enquadra como serva, principalmente ela. A obrigação maior de nos guiar a perfeição deve ser e é dela. – por um momento ele hesita, arqueja e continua. − Ela não deveria ter servos naquele palácio, nem deveria haver um palácio... Mas isso é algo que não deve preocupá-lo. Eu tenho de ir e obrigado pela refeição.
Ele se levantou e acenou com a cabeça, a capa verde era impecável e a roupa era toda branca com detalhes em oliva. Parecia que iria sair voando dali ou entrar em algum dos portais que tanto ouvi falar quando criança. Os cabelos loiros começaram a se mover com o vento, assim como a capa, segurou seu longo arco prateado com folhas desenhadas em alto relevo e começou a caminhar para o lado oposto das montanhas, contrariando a minha imaginação. Eu fiquei ali parado e depois de um tempo não ouvia mais os passos.
A coroa dele devia ser dourada, é o que está nos livros. Porém, alguns mais próximos do templo da deusa alardeiam que após algumas discussões entre eles a coroa ficou prateada, e outros ainda dizem que ela vem perdendo o brilho a cada dia, um sinal de que ele estaria se afastando de nossa deusa. O motivo parece ser aquele como o que eu não deveria me preocupar. Ele tem razão, não é da minha alçada, tenho oitenta anos para ficar mais poderoso e poder ajudar com mais que frutas. Então talvez um dia consiga entender.
Espero que os dois entrem logo em acordo, seria terrível um mundo onde o Dantiello e a Deusa discordassem ideologicamente.
Recolho minhas coisas e volto a caminhar e a pensar no que o Dantiello disse. Agora, mais do que nunca, preciso ser aceito pelas Tecelãs do Aço.










Este conto foi escrito por Rafael Cardoso, colaborador e co-autor do Universo de Exíllia.
                                  Revisão e edição de Rodrigo Amaral.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Não preciso disso.


Cafarnaúm − Continente de Dozzer. 1998 depois da Queda.


Noah Armstrong

− Não. – estou convicto.
− Sabe que não tem escolha. Se isso é um fato e ponto por que não o aceita e sofre menos? – a voz áspera e monocórdia arranha o ambiente. Aquele cheiro de pólvora que o acompanha desde sempre. Não importa como tente disfarçá-lo, minhas narinas nem queimam mais.
− Podemos nos recusar a vender. A D.Armstrong é uma empresa sólida, com um mercado em crescimento e pioneira no que faz, no modo como faz. – argumento. Acredito que já tivemos esse diálogo antes, em algum momento passado próximo, mas nunca tenho certeza de algo que envolve Gerard.
− A D.Armstrong vende armas, Noah. Você não deve romantizar isso. Ainda cheira a leite se acha que a vida é simples assim, com os bandidos e mocinhos em lados opostos. As pessoas querem matar umas as outras, isso é uma necessidade básica, como comer e se vestir.
− O capitalismo faz isso com as pessoas. – rebato sem pensar, estou permitindo que a raiva se instale e isso é um erro. Respiro devagar e tento me controlar.
Gerard me fulmina com o olhar, duro, inflexível. Retira as mãos dos bolsos e alisa o terno cinza da Dormanis. É o mesmo olhar de reprovação que me cedia quando quebrava algo ou trazia o cão para dentro de casa nas noites de chuva. Um helicóptero pousa no terraço e a janela vibra suave a nossa frente, ainda o encaro, não posso correr agora.
− As pessoas criaram o capitalismo, Noah. O mundo é assim e ficar reclamando nada muda. Precisamos assinar aqueles papéis hoje, pois daqui a um ano a D.Armstrong valerá 5% do que vale agora. Irão nos sufocar, nos processar por cada fagulha fora do lugar, atacar nossas fontes de matéria prima e dizimar a mão de obra. Esperam que neguemos para terem a chance de fazer isso, por isso vamos aceitar e vender. Pegamos o dinheiro e é o fim.  – a voz não se altera, firme e calma.
− Passou meio século criando o império, a empresa é a sua vida... Vai mesmo vendê-la e tirar férias vitalícias? – sei a resposta, mas preciso perguntar.
− Sim. – ergue a xícara e sorve o café sem pressa. Volta-se para a vista panorâmica de Naástii, o grande centro urbano, exalando fumaça e corrupção por cada poro de metal e vidro. Um oceano de prédios de concreto e asfalto quente e impermeável. Quando desisto de uma explicação mais ampla ele me surpreende ao continuar. – Não se pode lutar contra o instinto natural de auto-preservação. Não podemos ir contra um sistema de reinos milenares e espécies xenófobas. Eles estão se engolindo e temos que somente sair do caminho. Não estaremos vivos quando se matarem e levarem o planeta junto, e também não podemos impedir, nos resta resignar e assumir o anonimato, ser ninguém é não ser um alvo. – termina a xícara e a abandona sobre o pires de porcelana artesanal pintada a mão por uma tribo qualquer das fronteiras da civilização.
− O problema é o dinheiro. O sistema monetário obriga as pessoas a serem inimigas, adversárias, enquanto a mídia floreia a vida com falsos votos de amor e amizade com o próximo. Não podemos alcançar a excelência em matéria de sociedade se a mesma for baseada em valores mesquinhos. – desabafo. Odeio o modo como funciona o mundo e preciso fingir que posso mudá-lo.
− Eles não querem melhorar a sociedade. Querer ficar ainda mais ricos e poderosos. E se não sairmos do caminho vão nos matar, somos somente gado. Comprando e bestando, consumindo e reproduzindo para manter a máquina funcionando. É só, Noah. Não se culpe, você não pode fazer nada. – ouvir meu velho pai admitir ser gado é assustador. Não estava preparado para isso.
Fico em silêncio. Os tubarões devem estar chegando à sala de reuniões agora e não tenho mais tempo. Acabou, e eu falhei. As armas que venderia a preço de custo para povos oprimidos serão usadas para dizimá-los, com juros e correção monetária. Ária entra e avisa que está na hora, e se vai quando recebe um aceno de Gerard, sempre discreta e prestativa. Meu pai volta a me observar e posso jurar que seus olhos estão úmidos pelo brilho excessivo, toca-me no ombro e aperta de modo fraternal. Aquelas rugas me dizem tanto, seu rosto sofrido parece ter sido esculpido em mármore bruto, sem qualquer maquiagem ou cirurgia plástica, seco e cru. Um homem justo e verdadeiro consigo mesmo. Vira-se e caminha rumo à porta, abre-a e adentra a sala de reuniões, os tubarões estão lá, famintos. Sentados em bilhões e ainda contando as migalhas, vendendo doenças em frascos e hambúrgueres e lambendo o mundo, estuprando-o com um expansionismo predatório.
A porta se fecha e fico sozinho, o café esfriando sobre a mesa de tampo de aço inoxidável e vidro. Olho ao meu redor e vejo muito suor e sangue em tudo, cada obra de arte nesta sala, cada móvel e material de escritório. Quantas pessoas deram horas de suas vidas a troco de algumas notas coloridas para que eu fique aqui parado com cara de idiota? Tudo que tenho acaba por me prender. Borrar a realidade a minha frente, o conforto faz eu não querer lutar. Sou escravo de meus confortos fúteis e mesquinhos. Pastando e bestando enquanto permito que outros decidam o destino de meus filhos e netos. Não lutar é permitir. E eu não preciso disso. Nasci nu e chorando.
Lembro-me de Gerard feliz quando fechou seu primeiro grande contrato e pudemos comprar a casa nas montanhas, onde não teríamos mais medo dos bandidos que rondavam nosso bairro. Essa é uma das estratégias: pregam que o banditismo é composto por desfavorecidos e oprimidos e que os ricos são culpados pela má distribuição de renda, que por acaso é culpa deles, banqueiros e políticos de riso fácil – assim quando alguém sequestra seu filho a sensação é que se está somente a pagar uma dívida de classes. Malditos filhos da puta.
Não me lembro mais de ter visto meu pai feliz.
É nesse momento que decidi abandonar tudo, sem amarras e luxos, sem confortos e reclamações, levantar de minha segurança e seguir uma meta clara e que me preencherá com o maior prazer desse mundo podre.
Vou matar todos eles.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Sempre com Força.


Naástii − Excelentria. 2010 depois da Queda.


Devon – Suzanne

O salão de baile fervilhava com as danças sincronizadas da nobreza de Naástii, depois de muito vinho a sincronia decai consideravelmente. Pobres riquinhos mimados com suas sedas e jóias de família. Da sacada interna contemplo a festa multicolorida, ostensiva e opulenta. Os músicos estão se esforçando, afinados e em sintonia, mas os bailarinos profissionais misturados estão mais preocupados em estabelecer contatos que em sua arte cinética corporal. Assim que Suzanne entra no camarote seu perfume Trestan 3º da Vinóliria Mardans, com notas inicias picantes e camadas de mirra aspergida inunda o ambiente sem agredi-lo. Se não consigo explicar a razão de causa e efeito de um ciclo fechado mesmo com todos os meus diplomas acadêmicos nomeio como magia. Suzanne é mágica em seu todo. Sua presença simples consegue aumentar minha pressão sanguínea, quando se aproxima mais meus pêlos arrepiam-se em resposta. O vestido cauda longa contrasta muito bem com o decote provocante e as cores parecem naturais quando vistas sob suas madeixas ruivas. Os seios perfeitos em tamanho e volume me atraem o olhar. Ouço as taças tocando-se quando Suzanne oferta-me um brinde, mas não retiro a visão dos órgãos polêmicos e redondos, sinto a boca salivar. A alta ruiva meneia a cabeça e lambe vigorosamente minha orelha, chupa-a com uma mordiscada por fim antes de dizer num sussurro delicioso:
– Vem... – caminha sobre os saltos sem pressa e se vai com a certeza inabalável que será seguida. Uma confiança felina, agressiva e prepotente. Sigo-a sem disfarces, pouco me importo com os presentes. Ela é irresistível e ponto.
Caminho rápido para alcançá-la assim que ultrapassa a porta, uma qualquer que nos levou a um local escuro. É certo que Susanne tenha preparado esta sala para a situação, pouco importa. Seguro-a pelo braço e viro num arranco, batendo-a contra a parede, maldito sorriso gostoso. Ataco os seios fartos enquanto a beijo, massageando-os amiúde, rasgo o tecido e toco-os como merecem. Torço os bicos já rijos e ouço-a gemer bem alto. Nossos corpos estão colados e começo a transpirar.
Nesse momento minha mente foca. Todas as linhas de raciocínio convergem para o prazer incondicional. Sinto a força de uma mão pressionando meu membro ainda sobre a calça – primeiro o corpo já volumoso e pulsante, depois a cabeça, friccionando-a com experiência. A língua selvagem chicoteia em minha boca, sedenta, faminta, vasculhando cada canto. Agarro-a na base dos cabelos e abaixo-a com força enquanto arrebento o botão ao abrir a calça, sinto-a resistir, tentando se levantar em vão. Tenho mais de dois metros e centro e trinta quilos de excitação no máximo. Introduzo o membro na boca de Suzanne que o chupa com sofreguidão e força, muita força, parece querer engoli-lo. Soco a parede com a mão livre e sinto-a afundar na madeira e uma leve sensação de dor. A boca desliza em um úmido vai e vem constante e poderoso. Começo a forçar a cabeça de Suzanne contra o membro fálico e arremeter contra a boca, vejo-a arranhar meu braço e virilha com as unhas pintadas e ignoro, forço ainda mais o oral. Então o retiro de sua boca e a saliva transborda, a sacana cospe o excesso e ri para mim com a maquiagem semi-borrada. Arremeto uma vez mais e cravo mais fundo, até a garganta, lá eu a seguro, pressionando sua cabeça contra a parede por algum tempo. Suzanne ainda chupa, sua língua lambe minhas bolas enquanto se engasga com todo o volume, empurra-me por reflexo, mas permaneço, estoco mais algumas vezes antes de deixá-la respirar com lágrimas escorrendo pelo rosto corado. Quase gozo, curvo-me um pouco para segurar o fluxo e recebo um tapa potente na face. Suzanne me empurra e tombo sem resistir, senta-se sobre mim ao levantar a saia, sinto a vagina úmida e inchada pressionada contra minha face e começo a chupar e lamber enquanto as coxas grossas apertam minha cabeça com força, sempre com força. A saia cobre meu mundo em uma escuridão quente e poderosa. Susanne curva-se para trás, rebolando sobre meu rosto enquanto me masturba rápido com um mão, ou duas, não sei bem. Somente sinto, muito intenso e úmido. Bebo aquela feminilidade quando minha língua vasculha o interior da gruta, não consigo respirar e não me importo, se perder a consciência aqui valerá a pena.    
   Suzanne sem aviso salta de minha face e senta-se, ou melhor, monta-me com vontade. O ventre molhado é preenchido com meu pênis avantajado, abrindo um caminho apertado que libera os melhores gemidos e palavras sacanas. A safada agacha e levanta, deslizando sobre toda a extensão do membro enrijecido. É nesse momento que eu tento me desconcentrar para não explodir. A fêmea sobe e desce, delira imersa no ato sexual, mas o macho deve, no momento certo, abster-se – deve fingir que é mentira e pensar em cadeiras, cadeiras e tijolos. É realmente difícil, viro-me para o lado em uma tentativa inútil de resistir e vejo uma jovem a nos observar. Suzanne senta com vontade e sonoridade e a jovem que nos observa acaricia entre as próprias pernas – de certo uma criada atraída pela nossa extravagância, mesmo com a música alta que ressoa sobre toda a mansão. Tudo parece flutuar, eu a jovem trocamos olhares cúmplices, não deve ter menos de vinte anos, muito excitada e confusa, continua a se acariciar sob a própria saia.
Minha ruiva cria o vínculo, abre sua essência e me permite entrar. Um calor branco que me retira da realidade. Suzanne é uma telepata de baixo nível, somente consegue acessar a mente de alguém através do toque, e mesmo assim de modo superficial. Mas durante o sexo, com a intensidade que alcançamos, é possível ultrapassar os limites do prazer físico, transamos em um nível de quase fusão de consciências, uma penetração plena e recíproca. Onde não há segredos e ilusões, onde se conhece o outro como um todo, onde se é por completo. Sem medos, mágoas ou frustrações. Sem desculpas.
Lembro-me de virá-la e estocar com muita força e velocidade, é difícil saber ao certo, a percepção sensorial se torna confusa e somente o prazer existe. Com muita força. O tempo flui como um líquido quente e me vejo ainda estocando, agarrado as ancas de Suzanne, que, de quatro, grita sem pudor e balança os cabelos vermelhos. Agarro a juba ruiva e continuo a arremeter, os estalos altos seguidos pelos gritos sem censura.
Preciso abstrair, não posso gozar agora, não quero que acabe. Abro os olhos com um esforço hercúleo e vejo a jovem beijando Suzanne, minha dama sentada, rebolando indomável em meu colo, minha boca em sua nuca, arfando enquanto a seguro pela cintura e reforço a penetração. Quando fecho os olhos posso sentir a jovem, como se Suzanne fosse um elo que nos ligasse. Éssia é o nome, estamos transando também e o que aprendo sobre ela é suficiente para desejá-la, sem nunca tê-la visto ou tocado. Nesse vínculo total podemos expressar através de pensamentos nossos desejos e Éssia logo atende o meu: desce com a língua exposta onde penetro Suzanne, tocando-a e lambendo-a no clitóris e massageando meus testículos com suas mãos pequenas. A criada dá pequenos beijinhos nos órgãos molhados e suga a vulva de Suzanne com vontade. Gostaria que me chupasse, mas não consigo sair de dentro de minha ruiva tão quente e apertada. Arremeto com mais vontade e força, muita força. Mais e mais. E não resisto, explodo em um mundo branco e silencioso, jorrando sêmen em esguichos volumosos.
Caímos exaustos no chão, jogados, com as roupas rasgadas, alguns ferimentos e felizes, muito felizes e realizados. Suzanne recosta-se sobre mim, com a cabeça em meu ombro e Éssia deitada ao nosso lado, ainda estamos interligados pelo toque, o elo mental se desfazendo com os segundos e as respirações entrecortadas. Isso deve ser amor, ou o mais próximo dele. Talvez por isso os deuses nos invejem.
Alguém entra no cômodo que somente agora percebo ser algum tipo de dispensa. A pessoa abre uma porta e se detêm ante a cena, parece ser um homem, mas não tenho certeza. Suzanne e Éssia ainda estão em mim, e eu estou nelas, nós três queremos ficar sozinhos. Pego o revolver calibre 45 no coldre a meu lado e aponto, recuo o cão com o polegar e somente vejo a porta aberta voltar a se fechar. Com força. Sempre com força.    
          

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Deixe queimar.


                               Algum lugar no continente de Dozzer. − 1996 depois da Queda.


                                                                           Zendrix


A vila não tinha nome, nunca fora fundada de fato. Não passava de um aglomerado de residências, estalagens, tavernas e armazéns espalhados, entremeados por ruas levemente pavimentadas e outras tantas de solo cru e poeirento em meio ao cerrado ressecado por um verão causticante. As pessoas indo e vindo com os vasos d’água sobre as cabeças, vencendo as distâncias várias vezes ao dia, reduzidos ao trabalho de subsistência. O gado enfraquecido agonizava e falecia nos campos áridos sem gemer e os abutres eram alvejados a flecha para a saciedade dos famintos desafortunados. Mesmo os animais domésticos estavam a desaparecer com o passar das semanas e nenhuma planta resistia verde, ressecadas e desprovidas de quaisquer resquícios de vida.
            Um meio dia qualquer quando o cavaleiro atravessou a rua que atravessava a vila, seu malhado, esguio e veloz, resfolegava inquieto assim que pausou sua viagem em frente ao único armazém que permanecia comerciando. Amarrou o cavalo em uma viga da varanda e gritou qualquer coisa sobre água e feno para as mulheres que picavam tubérculos por ali. Adentrou o armazém cobiçando as garrafas a mostra sobre tábuas dispersas acima do balcão. Notou um mendigo caído abaixo da janela, aparentemente dormindo, vestia trapos escuros e desbotados, jovem com os cabelos lisos fartos e a pele clara para alguém da região, e apesar da aparência de pedinte usava botas fortes de couro caro, que certamente valiam mais que o próprio.
            O homem senta-se num alto banco e debruça-se sobre o balcão no momento que um anão sobe num tablado do outro lado, mantendo-os na mesma altura. Uma breve olhada mútua e ambos formam seus estereótipos mentais e ligam seus pré-conceitos culturais. O homem fala primeiro:
            – Água, filtrada se possível. E conhaque, duas doses.
            – Cobre, prata se possível. E identifique-se, nome e procedência. – rebate o anão.
            Um ronco sonoro e entrecortado do dormente mendigo interrompe a resposta do homem, que a retoma assim que possível.
            – Perdão. Devem estar tendo dias difíceis e entendo isso. Louniel, emissário do magistrado missionário Onahf, o puro. – o homem retira um rolo carimbado da algibeira e o abre em frente ao anão.
            O pequeno homem observa por algum tempo e chama aos berros por um nome feminino. Logo uma jovem desdentada surge dos fundos do estabelecimento, sobe o tablado e se abaixa para ler algumas linhas, retorna ao anão com sinais positivos de cabeça e volta a se perder no mirrado estoque do mercado. Sem demora alguns copos com água e conhaque surgem sobre o balcão. O homem bebe primeiro o conhaque.
            – Isso é bom, por Jefhar! Precisamos mesmo de uma comitiva para trazer comida e prata para essa secura. Em quantos vem? – pergunta o anão, visivelmente animado.
            – Algumas dúzias de serventes, dois nobres protetores e uma penca de seguidoras de acampamento. Chegarão amanhã e irão encher essa praça aí da frente. Devem ficar uns dois dias para descansar as montarias e para a convocação. – responde Louniel, agora tomando água e subitamente lembrando-se dos outros povoados por onde passou nos últimos meses como sinaleiro. Seu trabalho é avisar com antecedência sobre a visita do magistrado e sua comitiva para que os cidadãos em questão se preparem de antemão. Uns enfeitam as cidades, outros escondem seus filhos e outros preparam listas de pedidos. Para Louniel tanto faz, mais duas viagens e está livre, e por este serviço não terá que servir na guerra como milhares de outros homens. Bebe mais uma dose de conhaque.
            – Ótimo. Lucro para mim e menos garotos para se preocupar depois, o que posso querer mais? – ri o anão ao servir mais água. Uma mosca gorda voeja e o mendigo libera outro ronco. – Mais alguma coisa, senhor?
            – O mesmo que ele bebeu. – Louniel aponta para o mendigo, quer parecer engraçado. Quando se viaja por terras secas tempo demais é justo querer compartilhar alguma alegria com quem quer que seja.
            – Vai ser difícil, a não ser que queira mais água. Esse daí não tem grana para se embebedar. – o anão nem olha para o dormente ao comentar. – É somente um louco.
            – Mais conhaque então. – pede Louniel.
            Enquanto conversa com o anão o sinaleiro batedor consegue ouvir a movimentação se espalhar pelo povoado, a notícia passar de boca em boca, o burburinho, boas novas para um povo sofrido.
            Primeiro vieram os cavaleiros e suas imponentes montarias. Chegaram ao fim da tarde, quando o sol arrefece e se pode respirar melhor. Adentraram a praça enfeitada com bandeirolas e iniciaram o levantamento das tendas. Colocaram o trono do magistrado em um pequeno palanque improvisado ao lado de um poço artesiano seco, ao lado a arca com o sagrado ramo da Viisante: a árvore sagrada dos Ouvidares, antigo reino humano pré-queda, queimada sobe o ataque do dragão Mehrartios. Os galhos e ramos restantes estão espalhados pelos continentes desde então e se tornaram objeto de culto por toda Exíllia.
            A comitiva chega com as mulheres espalhando folhas secas quaisquer no pavimento antigo, atrás a longa carruagem range languidamente sob o próprio peso, sacode e rincha como que viva ao adentrar a praça onde todos aguardam ansiosos. Muitos ali jamais viram qualquer autoridade real ou algo parecido, somente o cobrador de impostos, e outros tantos jamais verão. É momento de pedir e suplicar, entregar algum filho ao exército e acreditar que o mesmo terá uma vida melhor longe do sertão infértil.
            O parar da carruagem é seguido por um silêncio incomum, mesmo uma cadela ao latir de fome e estranheza fora silenciada a chutes e colocada a correr para outra viela qualquer. As mãos pressionadas, untadas em suor, e olhos bem abertos para nada perder. O povo sem notar mais se aproxima da casa sobre rodas enquanto os cavaleiros os mantêm a uma distância segura para seu senhor. E o senhor surge. Abre a portinhola e sob aplausos desce da carruagem. As roupas mais leves que seu cargo permite o empapam em suor e todas as viagens desgastantes não colaboram com seu humor, tornando-o pouco afável no dia. O peso extra ganho com anos de sedentarismo burguês foram amenizados com a falta de todas as mordomias que lhe são comuns, mas ainda lhe sobram dezenas de quilos egoístas para apresentar aos súditos em nome do rei. Caminha sem pressa sobre o palanque, ouvindo-o ranger e pensando em quem matará se aquilo ceder sob seus rechonchudos pés. Assenta-se no trono e se ajeita, ergue o braço roliço e faz cessar os aplausos. Os archotes são acessos nas vielas enquanto o ocaso se finda no horizonte árido. Um menestrel ao lado do trono anuncia o início dos trabalhos da noite:
            –– Onahf, o puro, magistrado real está presente! Louvado seja Jefhar que ouviu seus clamores nesta terra seca. Antes das apresentações, do recrutamento e das petições iniciaremos com uma oração à Viisante! – o bardo abre a arca e retira com extremo cuidado o grosso ramo ainda enrolado em veludo lilás com o selo real. Coloca-o sobre uma armação metálica apropriada e revela seu conteúdo nodoso e irregular, sagrado. As bocas se abrem assim como os olhos e o povo estático observa com devoção e temor.                 
            Ao término do clamor Onaf começa a ouvir as apresentações, nobres menores e cavaleiros livres, muitos dos quais o seguem durantes as viagens e alguns cidadãos mais abastados da região. Nomes e sobrenomes são proferidos, famílias são exaltadas e brasões erguidos e hasteados em mastros improvisados. Toda a pompa burocrática é seguida a risca. Então o magistrado proclama:
            – Ajoelhem-se perante Jefhar, o rei, a Viisante e a mim!
            O movimento se multiplica pelo povoado, todo joelho se dobra e as cabeças se abaixam em reverência. Onahf observa a cena, um gesto seu e todos se erguerão, contudo o experiente magistrado gosta do que vê: a submissão, até hoje isso lhe massageia o ego e lhe dá prazer, depois de tantos anos. Estende a situação alguns segundos além do necessário e se delicia.
            Então ele surge.
            No silêncio submisso coletivo ele abre ruidosamente a porta do armazém com um empurrão. Caminha despretensioso e cambaleante, escora-se em uma parede e retira o membro viril, sacode-o um pouco e urina sem qualquer pudor. Pende a cabeça para trás e abre suavemente a boca, aliviado pelo ato simplório.
            Os mais próximos cidadãos notam a situação e paralisam, mesmo os nobres mais distantes, ao redor do palanque, ergueram as cabeças para ver e ainda assim não sabem o que fazer. Seria prudente se levantar sem o consentimento do magistrado e dar um sumiço no mendigo? Ou melhor fingir que nada acontecera e continuar com a cerimônia santa?
            Onahf também se surpreende, mas logo se recompõe e pergunta com autoridade:
            – Quem és tu para desrespeitar este sagrado momento?
            O homem o ignora. Guarda o pau e sai caminhando e coçando a cabeça com um bocejo longo. Um murmúrio crescente se espalha pelos aglomerados, aos poucos as cabeças se viram para entender a situação discrepante.
            Onahf sua um pouco mais, seus seguidores se entreolham e o olham cabisbaixos, não podem tomar as rédeas da situação e aguardam que seu senhor o faça. Assim, pela primeira vez em anos, Onahf pergunta uma segunda vez:
            – De onde vens para agir com tal repúdio a lei e aos bons costumes?
            O homem cessa os passos. Algo muda em sua mente confusa. As últimas palavras proferidas em sequência parecem tê-lo resgatado de um sono profundo dentro de sua própria sobriedade. Gira a cabeça, abre um sorriso largo e responde aos berros:
            – VELHO, EU VENHO DA LUA! – abre os braços e seus cabelos, antes caídos, eletrificam-se, tornando-se rijos e espetados como um espinheiro. Uma gargalhada estridente e desconcertante assusta os mais próximos, espalhando-os, quebrando assim o culto santo.
            O respeito e reverência são perdidos e tudo se resume à gargalhada insana.
            Mediante a notória inaptidão do magistrado em lidar com a situação os nobres avançam, desembainham as espadas enquanto as pessoas saem do caminho, confusas e assustadas. A gargalhada persistia ante o avanço dos homens armados que logo cercaram o insano risonho.
            Louniel a tudo observa ainda próximo ao palanque, atônito. Vê os homens estocando e golpeando o ar enquanto o mendigo dança entre eles sem parar de rir com uma graça felina, girando e saltando e confundindo-os com acrobacias e elasticidade incomum. O sinaleiro chega mais perto, contraria a turba que se afasta da contenda e se achega para ver melhor como um ninguém brinca entre fios afiados de seis homens experientes em armas.
            A gargalhada engasga-se em dor assim que um talho se abre nas costas do mendigo, que tropeça cambaleante por mais dois passos e soca Hernar Lorefutt com força e técnica, deslocando-lhe o grande maxilar em um estalo ruidoso seguido por um grito horrível. Ambos caem e rolam, atracados no pavimento rústico. Os outros homens decidem por não golpear a esmo para resguardar o amigo e preferem por tentar segurar o maluco. Onahf berra por sobre o palanque:
            – Não o matem! Eu quero enforcar o herege e vê-lo dançar! Não o matem!
            O magistrado vê seus subordinados agarrando o maldito que se recusa a largar Hernar. Os gritos seqüenciais assustam por não terem motivo aparente. A descarga elétrica sai do corpo do mendigo e se irradia pelo toque para todos os envolvidos, grudando-os em um momento e espalhando-os em outro. Alguns caem imóveis e poucos ainda se contorcem no chão. O insano se ergue trôpego, o rasgo largo aparente no dorso sangra sem parcimônia, cambaleia e se escora na mesma parede que havia urinado, olha na direção de Onahf e vê o magistrado engolir a seco.
            – Arc’karraton mandou dizer que os dados estão rolando, mas que o seu lado está visível hoje! – brada o louco. Uma luminosidade macabra emana de seu grave ferimento, pulsa por vezes e o torna uma cicatriz horrenda e larga. A gargalhada retorna.
            Os poucos cidadãos ainda presentes, mesmo que de uma distância segura, bradam acusações de bruxaria e maledicências e se evadem por fim, deixam Louniel entre o menestrel atônito, o magistrado que se ergue do trono de modo desajeitado e o louco, que caminha aos risos e caretas rumo ao palanque.
            O sinaleiro mal pensa, e sai do caminho, permite que o louco passe e continua a observar. Não se sente capaz de andar ou algo assim tão drástico. Somente observa. Observa o mendigo se aproximar do magistrado e o mesmo berrar para que o menestrel o defenda. O pobre bardo treme com o gordo às suas costas e o louco à sua frente, rindo.
            – Corra maldito! Corra! Corra até suas pernas descolarem do corpo porque vou atrás de você, bardo fajuto filho da besta! – grita o louco.
            O menestrel se move tão rápido que derruba o magistrado em sua fuga, deixando rastros de urina e um gordo perplexo e assustado no solo.
            O louco se aproxima e observa Onahf retirar um antigo revolver trabalhado em marfim e madrepérola. O gordo aponta o artefato e ordena:
            – Afaste-se em nome do rei! Afaste-se e me deixe em paz!
            – Paz é uma boa palavra, um conceito digno e honrado, na teoria é claro. – o louco força o passo e o gatilho é pressionado, mas a arma falha. A idade da arma, talvez a falta de manutenção ou somente o caos, nada será explicado. A natureza não se explica, descubra você.
            O louco retira a arma das mãos do indefeso magistrado, uma ruína humana que somente consegue balbuciar palavras desconexas assim que sua mente começa a se desfazer e inicia o processo de declínio racional consciente ladeira abaixo.
            – Não... Você... Não pode... Magistrado... Eu... Rei... Não pode... Você...  – balbucia Onahf com olhos parados e perdendo o foco, a boca fecha e abre sem emitir sons reconhecíveis.
            – Esperto. Querendo fugir não é? Se esconder nessa cabeça oca e careca. Não vai dar certo, volte para mim. – o louco penetra alguns dedos na boca entreaberta e segura a cabeça com a outra mão. O arranco é tão forte que estala quando a bochecha se rompe com a pressão, tracionando Onahf de volta a realidade crua, com um rombo na face e um pesadelo risonho à frente. Os gritos são guturais, viscerais e vermelhos.
            Louniel, ainda incapaz de reagir, vê o louco ir às lanternas a querosene e pegar duas, retornar e despejar o líquido por sobre sua vítima e atear fogo, a seda e o cetim não demonstram nenhuma resistência. Os gritos pioram. Muito. E o magistrado ganha forças para se levantar em chamas e correr, tropeçar cair tornar a se levantar e voltar a tentar correr, aos tropeços.
            O louco acompanha com o olhar e o detêm ao ouvir algo.
            – Você ateou fogo... O magistrado está pegando fogo. – comenta Louniel, sem entender por que.
            – Tem razão. – responde o louco. – Não podemos deixar assim. – finaliza. Reaproxima-se do palanque e tenta retirar as hastes metálicas que seguram o ramo da Viisante, ao perceber a imobilidade dos mesmos retira o próprio ramo sagrado e corre rumo a sua vítima. Espanca-o sequencialmente em meio às gargalhadas até que pare de se mover, muito depois de o fogo ter se extinguido.
            O louco respira ofegante e limpa o suor da testa, sujando-a com sangue. Observa o ramo sagrado e decide por tomá-lo para si. Não pelo cunho santo e sim pela resistência incomum a impactos potentes e sucessivos. Se pega sendo observado por Louniel que ainda estático se pergunta sobre sua própria situação nisso tudo. Ambos se olham e o assassino pergunta:
            – E então, o que aconteceu aqui hoje? – abre o sorriso e se aproxima do sinaleiro.
             – Você matou várias pessoas, destruiu um culto sagrado e desrespeitou as leis do rei. – responde Louniel, de forma muito mais rápida e prática que se acharia capaz.
            – Não, não, não. – o dedo indicador negativa ao sacudir de um lado a outro.  – Eu me defendi contra um grupo que quis me matar, findei a vida de um parasita capitalista, livrei essas pessoas de credos imbecis e lhes dei comida e água para enfrentar esse verão terrível. – rebate o louco, apontando tudo da comitiva que acaba de ficar sem dono.
            Louniel pensa um pouco e somente diz:
            – Não. Isso está errado.
            – Sim, claro. Se houvesse algum herói ou algo parecido eu poderia ter problemas para explicar meu ponto de vista. Tem algum herói aqui? – pergunta o louco. Volta-se para as casas trancadas e insiste. – Alguém? Algum herói? Somente um! Algum? – retorna a olhar Louniel. – Algum herói por aqui? – erguendo uma sobrancelha.
            – Não. Nenhum. – responde Louniel. Suando frio.
            – É o que parece. E isso prova meu ponto de vista. Da próxima vez deixe-os queimar. – o louco dá dois tapinhas no ombro do sinaleiro e se despede com um sorriso, seguindo rumo ao poente com o ramo ensanguentado da Viisante e botas boas para viagens longas.
                      

sábado, 14 de janeiro de 2012

Hoje.

                   Desafiando.
Preciso vencer a inércia.
Deixar o mundo se criar enquanto me acalmo e respiro, uma vez mais. E outra.
Estamos perdidos, mas Exíllia precisa ser escrita.